Um italiano foge “do que já foi um paraíso”, um padre tenta provar que não apoia os russos: sinais de intolerância “são errados mas não surpreendentes”

Um italiano foge “do que já foi um paraíso”, um padre tenta provar que não apoia os russos: sinais de intolerância “são errados mas não surpreendentes”

As filas para entrar na Polónia pela fronteira de Shehyni, de carro, atingiram no domingo os 35 quilómetros. A pé, a espera pode ultrapassar as 20 horas. Quando o Expresso chegou ao controlo de passaportes, esta quarta-feira pelas 10h00, um guarda fronteiriço polaco perguntou como estava a situação do lado ucraniano. Contámos-lhe que tínhamos atravessado a fronteira num grupo de cerca de 400 ou 500 pessoas, muita gente. No seu rosto logo os olhos se esbugalharam: “Muita gente? Vocês acham que isso são muitas pessoas?”. E foi aí que nos disse que nos últimos dois dias, por esta mesma hora, havia já mais de 30 mil pessoas do outro lado à espera para entrar na Polónia. “Muitas esperaram 24 horas em pé”.

O processo é rápido, poucas perguntas são feitas a quem chega, os refugiados não são obrigados a mostrar o passaporte, apenas qualquer documento que sirva de identificação. Com a filha de oito anos pela mão, Alan Sofi, italiano de 44 anos e residente em Kharkiv, uma cidade devastada por bombardeamentos que fica a menos de 50 quilómetros da Rússia, não consegue esconder os nervos: leu alguma coisa sobre não estarem a deixar passar cidadãos que têm residência registada na Ucrânia, mesmo se a sua nacionalidade for outra. “Trouxe-a só a ela comigo, a minha mulher está mais atrás, com o nosso outro filho. Se eu disser que ela está só comigo têm de me deixar passar, porque ela não pode ficar sem o pai, se só tiver o pai”. Alan tem dois passaportes, nasceu em Londres mas os pais mudaram-se para Módica, em Itália, quando ele tinha 10 anos. Ligou às duas embaixadas: “Os italianos disseram que isso nunca iria acontecer, isso de reterem aqui para eventualmente combater, os britânicos disseram-me que lhes ligasse logo se não conseguisse sair. Vamos para Londres assim que conseguirmos descansar um pouco”, diz.

Quando chegou a Kharkiv, há 12 anos, diz ter encontrado “o que já foi um paraíso na terra, como Itália nos anos 70 e 80, totalmente hippie, relaxado, uma cidade incrível”. Apaixonou-se por Ilyna, a mulher alta, loira, de rimel azul e com um sorriso constante, que acena à filha, Emma, escondendo-se depois atrás de outras pessoas. Emma procura a mãe e ri-se muito. Alan olha logo para a frente, diz à filha para estar ali um bocadinho sossegada ao lado dele. “Um prédio inteiro a 200 metros do nosso ruiu diante dos olhos dos miúdos. As sirenes, em Kharkiv, vêm depois dos ataques, já não adiantam. Se ouvires um avião e ainda estiveres vivo três segundos depois, tudo bem, podes relaxar mais três ou quatro horas, em média”.

Agora já não há um paraíso em Kharkiv e foi em 2014 que o declínio começou. “Com a conquista de Donbas pelos separatistas, a divisão cresceu imenso na sociedade, os falantes de russo são olhados de lado. Em Lviv fui ao supermercado e falei em russo, não sei mais nada. A senhora da caixa ficou toda incomodada, tive lhe dizer que era italiano, que simplesmente falava russo, mas, também, vamos ser sinceros, há cidades inteiras destruídas pelos russos, é natural que a tolerância seja escassa”.

Nem toda a família quis vir com eles, os pais de Ilyna, avós de Emma e do outro filho do casal, Gabriel, que vai passar a fronteira só com a mãe, ficaram como “guardiões do quarteirão”, foi a frase que usaram, querem defender a casa até todos poderem regressar. “Estão demasiado cansados para pensar em sair da cidade onde viveram a vida toda, acham que, se saírem, vão acabar por morrer fora de casa e isso é uma coisa impensável”, diz Alan.

Unidos em espírito, inimigos terrenos

A intolerância com os símbolos da presença russa no país, que são naturalmente imensos devido aos anos de história partilhada entre as duas nações, por imposição de Moscovo, está a notar-se também nas igrejas. “Eu sou de Mariupol, não falo com a minha mãe há cinco dias, se calhar já não está viva. Estavam cinco pessoas com ela no apartamento, mais membros da nossa família, nenhum está contactável. Isto é uma consequência de um ataque russo, indesculpável”.

É esta a primeira frase que o padre Lavrentiy, nome que escolhe para não usar o seu verdadeiro, diz ao Expresso, quando finalmente nos sentamos com ele, prometendo não gravar a sua voz e não fotografar o seu rosto. “O nome quer dizer Lourenço, na vossa língua”. Não tem autorização superior para falar do que se tem passado na sua igreja, que segue os ritos da Igreja Ortodoxa Russa, mas quer dizer qualquer coisa, mesmo para um jornal português, espiritual e geograficamente muito distante desta sua luta. “Nós não somos como o homem que manda em nós e por isso já demos apoio ao processo de cisão, vamos ser autónomos, quer Moscovo aprove, quer não”, diz o padre, referindo-se ao Patriarca Kirill, bispo de Moscovo, a figura mais alta da Igreja Ortodoxa Russa, que esta semana considerou que a guerra na Ucrânia é culpa do “orgulho gay”.

Igreja Ortodoxa Ucraniana em Lviv. Ainda responde a Moscovo mas quer tornar-se autónoma por causa das posições que o patriarca tem acalentado a favor da guerra da Rússia contra a Ucrânia Fotografia: Tiago Miranda

A sua congregação tem cerca de 300 pessoas, “todas falam russo, cresceram nesta religião, mas nenhuma tem passaporte russo ou se sente russa, que eu saiba”. O que não impede que o espaço onde dá missa já tenha sido alvo de ataques xenófobos desde o início da guerra. “Russos, daqui para fora”, dizia o lençol que encontrou amarrado às grades há uma semana. “São jovens que não conseguem combater, que querem fazer alguma coisa, dar uso ao ódio que sentem, e então fazem estas coisas, não entendem que estão a atacar ucranianos. É errado e não deve ser tolerado, mas não é surpreendente”.

A desconfiança em relação a quem vem de zonas com uma grande percentagem de falantes de russo não é uma realidade nova no ocidente da Ucrânia. Quando foi enviado para Lviv, há quatro anos, também teve algumas dificuldades, estávamos a meio da guerra na província de Donbas. “As pessoas pensam que eu recolho o dinheiro dos fiéis e envio para a Rússia e também já vieram aqui as autoridades ver se eu estava a esconder armas ou infiltrados. Surgiram notícias de que algumas igrejas estivessem a fazer isso em Kiev, não sei se é verdade, então eles querem controlar. Tudo bem por mim, mas eu estou tão perturbado com esta guerra como qualquer outro ucraniano, até porque Mariupol é Ucrânia e foi onde nasci, eu e a minha família”, diz.

Mesmo ao lado da igreja há uma estrutura pré-fabricada onde o padre Lavrentiy tem recebido centenas de refugiados, quase todos do leste russófono. “Eles não vêm aqui pedir-me ajuda porque estão a ser atacados por ucranianos, vêm para aqui porque estão a ser atacados por russos”. Toca o telefone do padre: “Hello darkness my old friend, I came to talk to you again”.

Da Rússia, alguns amigos e familiares distantes dizem que eles devem deixar os russos entrar e ajudar. “Ajudar em quê?”, pergunta-se o padre a si mesmo, a pensar alto. “É do outro mundo. Somos irmãos espirituais mas matamo-nos no mundo físico, como Abel e Caim”.

Ainda não foi este o telefone que lhe trouxe notícias de Mariupol, que esta quarta-feira foi novamente bombardeada. Uma maternidade ficou inutilizável e mulheres em trabalho de parto tiveram de ser retiradas pelo meio dos escombros, em macas improvisadas. “Nunca pensei que o Patriarca fosse capaz de dizer tão abertamente que apoia a guerra, ele é a única voz que os russos, mesmo os mais isolados, mesmo os mais sujeitos a propaganda, ouvem, além da do Putin. Ele podia realmente ter feito a diferença, podia ter condenado a violência, os russos iam ao menos ficar a pensar duas vezes no assunto, mas não, então os padres da Igreja Ortodoxa Ucraniana deixaram de o mencionar nas missas, o que nunca tinha acontecido antes”.

Alan e a família não ficaram retidos, até acabaram por passar todos juntos. Um mar de ajuda e sorrisos e disponibilidade espera toda esta gente do lado de cá da fronteira. Há médicos de vários países a dar consultas em tendas, atrás de uma grelha que faz quase um hexágono à sua volta, um rapaz vai rodando espetos com centenas de salsichas está assar, voluntários perguntam às famílias se é preciso alojamento, se querem registar-se já para uma lista de empregos disponíveis na área do país onde pensam estabelecer-se.