Panorama 2024 das artes: a política volta ao centro do palco

Panorama 2024 das artes: a política volta ao centro do palco

Mural de uma figura chorando, supostamente pintado pelo grafiteiro britânico Banksy na porta de uma casa destruída durante o conflito de 2014 entre Israel e o Hamas. A atual guerra em Gaza também está afetando o mundo das artes. Keystone / Mohammed Saber


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As questões políticas e a guerra em Gaza afetaram drasticamente as artes em 2023, e essa tendência deve continuar. Listamos algumas das questões mais relevantes para as artes, bem como uma seleção de mostras imperdíveis na Suíça no próximo ano. 

Este conteúdo foi publicado em 30. dezembro 2023 – 11:00




Eduardo Simantob

Nascido em São Paulo, Brasil, trabalha como jornalista na redação em português e responsável pela área de cultura da swissinfo.ch. Formado em cinema, administração de empresas e economia, trabalhou na Folha de S. Paulo, um dos maiores diários brasileiros, antes de se mudar para a Suíça em 2000 como correspondente internacional de vários meios de comunicação brasileiros. Baseado em Zurique, Simantob trabalhou com mídia impressa e digital, co-produções internacionais de documentários, artes visuais (3.a Bienal da Bahia; Museu Johann Jacobs/Zurique), e foi palestrante convidado sobre narrativas transmidiáticas (transmedia Storytelling, em inglês) na Universidade de Ciências Aplicadas de Lucerna (HSLU – Camera Arts, 2013-17).

É impossível avaliar o que esperar do novo ano sem considerar os desenvolvimentos dramáticos nas artes em 2023. 

Há um ano, a guerra na Ucrânia ainda ocupava as manchetes, mas seus efeitos no cenário artístico internacional permaneciam bastante limitados. No Ocidente, formou-se um consenso entre artistas, curadores e instituições para abraçar a causa ucraniana, ecoando a reação geral da população e dos governos em geral. No entanto, no resto do mundo, a solidariedade com a Ucrânia foi mais matizada. 

Essa dissonância entre os países do “Norte” e os países do “Sul” em sua percepção dos assuntos globais foi a principal fissura nos debates culturais em 2023. Os ataques do Hamas em 7 de outubro e a guerra que se seguiu em Gaza bagunçaram tudo. 

A guerra atual mergulhou o mundo da arte nas águas traiçoeiras do antissemitismo e da islamofobia – dois termos que têm sido usados, mal usados e abusados em todo o espectro político desde então.  

Os artistas estão sujeitos a processos de verificação mais rigorosos; acusações e contra-acusações, que confundem o significado de antissemitismo e islamofobia, inundaram as notícias e as mídias sociais. Uma simples assinatura em uma petição pode comprometer a carreira de diretores de universidades, professores, diretores de museus, curadores e artistas. Isso também aconteceu na Suíça.Link externo

O status de estrela não garante imunidade, até mesmo o artista chinês de renome mundial Ai WeiweiLink externo teve suas exposições canceladas. As democracias liberais e, em muitos casos, seus sistemas judiciais, estão tendo que lidar com gritos renovados de censura não apenas em instituições públicas, mas também em instituições privadas. 

Se há uma tendência mundial no setor artístico no momento, é a de apreensão e medo, em graus variados, dependendo dos países e das regiões. Mesmo que a Suíça tenha sido poupada de censura ou de grandes restrições financeiras até o momento, esses assuntos serão importantes no novo ano. E a principal pergunta é: como as artes enfrentarão esses desafios políticos? 

Apertando os cintos

O mercado das artes ficará feliz se conseguir se manter no mesmo patamar de 2023. A imprensa especializada tem apontado como as vendas moderadas em feiras de arte, um indicador bastante confiável, e as quedas nos leilões colocaram até mesmo o abastado circuito de arte no limite. Isso provavelmente continuará em 2024.

Além desses problemas, há uma tendência financeira preocupante em países onde uma parte substancial do financiamento das artes vem do Estado: os governos de todos os lugares estão cortando os orçamentos de suas instituições culturais.  

Em comparação com vizinhos como a Alemanha ou a França, a crise financeira pode ser menos acentuada na Suíça, mas em um circuito altamente interconectado como o das artes, essas medidas podem provocar um efeito dominó depressivo nas economias culturais de outros países.  

Fora das fronteiras da Suíça, todas as fontes de financiamento relacionadas ao Estado estão ameaçadas, principalmente as emissoras públicas, como a BBC (Reino Unido), a RAI (Itália) e a ORF (Áustria). Essas emissoras têm desempenhado um papel importante no cenário da mídia de todos os países europeus há mais de 50 anos, especialmente no apoio às indústrias cinematográficas nacionais. 

Nos últimos anos, porém, elas têm sido atacadas por partidos e governos conservadores e de direita, corporações de mídia privadas e políticos populistas, em uma tentativa de limitar seu escopo jornalístico e comercial.

Na Suíça, a Swiss Broadcasting Corporation SBC (empresa controladora da SWI swissinfo.ch) terá de se defender contra uma iniciativa popular, apresentada em 2023, com o objetivo de reduzir seu orçamento pela metade.

O drama das restituições

O dia 3 de dezembro deste ano marcou o 25º aniversário dos Princípios de Washington sobre arte confiscada pelos nazistas, um marco na resolução de disputas de décadas que também forneceu uma diretriz para lidar com a questão do saque colonial. 

O debate sobre a restituição de obras de arte tem sido intenso desde então, mas agora amadureceu e chegou a uma abordagem mais pragmática. Várias negociações estão em andamento entre museus e os países de origem das peças, principalmente na África, Ásia e América Latina.

Na Suíça, um fragmento roubado de uma antiga estátua de Ramsés II foi devolvido ao Egito em julho, o último de uma série de restituições de obras confiscadas à Líbia, China, Peru e México. Esses casos, no entanto, foram muito simples, já que as obras em questão foram roubadas e contrabandeadas para a Suíça, e não faziam parte de nenhuma coleção institucional importante.

No entanto, o grande drama suíço ainda é a controvérsia em torno da coleção Emil Bührle – um tesouro de mais de 600 obras de arte de primeira linha reunidas pelo infame colecionador suíço-alemão intimamente ligado ao regime nazista e, durante sua vida, um dos mais ricos vendedores de armas do mundo (e também o homem mais rico da Suíça).

Uma nova exposição da coleção foi inaugurada em novembro no Museu de Belas Artes de Zurique (Kunsthaus), tentando abordar a pesquisa de procedência realizada pela instituição, mas severamente criticada por especialistas. Foi criada uma comissão federal, e suas conclusões serão publicadas na primavera.

O poder das mulheres

O esforço global de museus e curadores na última década para reavaliar a importância e o valor de mulheres artistas historicamente mantidas à margem do cânone artístico ou tratadas como meros penduricalhos charmosos de seus parceiros, companheiros ou colegas homens continuará no próximo ano. A Suíça já abrigou importantes retrospectivas: Meret Oppenheim, Sophie Taeuber-ArpLink externo, Lee KrasnerLink externo, e Niki de St. Phalle, entre outras, e o novo ano traz várias exposições importantes.

Imperdível: “Família” (1988), de Paula Rego, uma das pinturas que serão exibidas no Museu de Belas Artes da Basileia. Private Collection, courtesy of Eykyn Maclean

Fique de olho nas exposições da artista luso-britânica Paula Rego, Power Games Link externo(Jogos de poder, Kunstmuseum Basel, 28.09.2024 – 02.02.2025); a retrospectiva de Marina AbramovicLink externo (Kunsthaus Zurich, 25.10.2024 – 16.02.2025), e a exposição da sul-africana Tracy Rose’s Shooting Down BabylonLink externo (Kunstmuseum Bern, 23.02.2024 – 13.08.2024).

O Museu de Belas Artes da Basileia também está trazendo para a Europa a excepcional exposição When We See Us – A Century of Black Figuration in Painting (Quando nos vemos – um século de figuração negra na pintura). Originalmente concebida no Museu Zeitz MOCAA (Cidade do Cabo) pela curadora suíça-camaronesa Koyo Kouoh e pela zimbabuana Tandazani Dhlakama, ela exibe um amplo panorama da pintura figurativa negra nos últimos 100 anos com obras de 156 artistas.

“Two Reclining Women” (Duas mulheres reclinadas, 2020), de Zandile Tshabalala (África do Sul), é uma das obras de arte contemporânea em exposição na Basileia, de 25 de maio a 27 de outubro de 2024. Courtesy of the Maduna Collection, © Zandile Tshabalala Studio

Bienal de Veneza

A 60ª edição da Bienal é o ponto alto das artes em 2024. Sob a direção do curador brasileiro Adriano Pedrosa, o primeiro latino-americano a dirigir o evento, seu tema é bastante oportuno: “Estrangeiros em toda parte”. O pavilhão suíço será ocupado pelo artista suíço-brasileiro Guerreiro do Divino Amor. A exposição vai de 20 de abril a 24 de novembro.

E não esqueçamos do cinema

Os frutos da era pós-Covid começam a florescer: nesta virada de ano, há cerca de 80 filmes suíçosLink externo sendo finalizados e programados para serem lançados em 2024. Os documentários constituem a maior parte, seguidos por filmes de ficção, animação e experimentais.

Muitos serão exibidos no Festival de Cinema de Solothurn, em janeiro, para onde converge toda a indústria cinematográfica nacional. Outra onda de estreias ocorrerá no festival internacional de documentários Visions du RéelLink externo, em Nyon, de 12 a 21 de abril; e depois, em agosto, no Festival de Cinema de LocarnoLink externo.

Os documentários são o formato em que a produção suíça se destaca e onde a proverbial neutralidade suíça é mantida à distância. Você pode esperar muita política, mesmo que seja apenas como alusão. Mas um filme abertamente político é altamente esperado: The Miraculous Transformation of the Working Class into Foreigners (A transformação milagrosa da classe trabalhadora em estrangeiros), um documentário do cineasta suíço-iraquiano Samir, que traz uma nova perspectiva para uma questão europeia candente, deve ser lançado no verão.

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